terça-feira, 5 de agosto de 2008

No Limite

Felício já tinha percorrido dois ou três quarteirões, correndo, e já não tinha fôlego para continuar. Depois de ter olhado furtivamente duas ou três vezes para trás, decidiu parar. Estancou bruscamente, levando as duas mãos aos joelhos. Sequer percebeu que atrás de si havia um muro onde pudesse apoiar-se. E enquanto ofegava ruidosamente, grossas gotas de suor a correr-lhe da raiz dos cabelos, escrutinava o cenário em derredor antes de continuar. Não poderia ficar ali, dando mole. Apertava os olhos toda vez que uma gota de suor lhes penetrava. Do outro lado da rua calçada de paralelepípedos havia uma praça arborizada onde muitas crianças, acompanhadas das mães, brincavam. Percorreu os olhos por todo esse ambiente e acabou vendo o que mais temia: uma guarita policial, na mais absoluta tranquilidade. Através da porta entreaberta aparecia metade de uma mesa, sobre a qual descansavam duas pernas metidas em coturnos. Pendeu a cabeça sobre o peito empastado de suor e ponderou antes de prosseguir. A esquina que a meio metro de sua direita o esconderia da praça era definitivamente o único itinerário a ser percorrido.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Máximas Literárias

"O excesso de prudências e de cautelas conduz muitas vezes a imprudências mais perigosas."
Júlio Diniz, in As Pupilas do Senhor Reitor, pág. 203, Editora Ática.

"Se não tivermos a fé de que há uma razão para as tragédias da vida,então começaremos a perder nossa capacidade de viver de fato." Humberto Rodrigues, in: Vidas do Carandiru, Histórias Reais, pág. 37, Editora Geração Editorial.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Rascunho

É de se estranhar que à primeira linha encontremos Laura, a heroína de nossa estória, completamente extasiada - ou deveria dizer ecstasiada -, deitada de costas, os braços abertos, as pernas para fora da cama, a pele lívida, os cabelos em desalinho. Tem os olhos empedernidos em estranhas pálpebras arroxeadas, fixos num mundo que trespassa o teto sujo em forro de madeira. Os punhos semicerrados denunciam a recente esquizofrenia que lhe furtara o último suspiro. Abaixo da axila direita, um discman toca Guns 'n Roses. À cabeceira, um livro de auto-ajuda aberto ao meio exibe uma tira de papel almaço, certamente usado como marcador de página, cheio de anotações. Descubra-se não teria sido decerto um best-seller, mas do gênero, foi o que mais lhe chamou a atenção em seus corriqueiros passeios pelos sebos da Sé. Atravessava um momento delicado em sua vida, para não dizer tenso, ou conturbado, e dir-se-ia que as anotações da tira de papel bem declaram o conflito em seu mundo interior. A um ou dois passos, no máximo, da cama, acha-se a Bíblia, também aberta, sobre a mesinha de telefone. Uma bíblia ilustrada, cuja ilustração em que se acha aberta a página é a de um centurião em rogo de misericórdia, de joelhos numa pedra, as duas mãos apoiadas na espada estacada, a cabeça erguida aos céus em olhar súplice. E ao lado da Bíblia, um copo d'água pela metade. A luminosidade externa, adentrando pela veneziana de madeira entreaberta, esmaece em contraste com o interior soturno, e o ruído desarmônico da rua parece arranhar a sinfonia sibilada de Paradise City.
O corpo seminu, em sua perfeita forma de mulher, exibe a espaços marcas de cigarro e avermelhidões. Os seios, insinuando-se para fora do sutiã, estão arroxeados como as pálpebras. As marcas de cigarro estendem-se ao longo do tronco e a púbis com avermelhidão característica de sangue coalhado denuncia algum tipo de violência sexual. As pernas longas e torneadas, estendidas para fora da cama, estão intactas, cobertas até à altura dos joelhos por uma toalha branca, manchada de sangue, estendida até à altura da púbis. Seu olhar teso parece súplice, a expressão genuína de um desejo sufocado pela alucinação inconsciente. Seus lábios retesados num ricto de espasmo melhor definem a agonia em que se fiara.
Mas não conheçamos assim, logo à primeira linha, nossa heroína. Isto que se lê é o desenlace, pois o início de tudo está ainda por vir, a fim de a conhecermos melhor e entender o porquê do trágico fim.


Stargate

Examinei sobre a palma de minha mão esquerda um livro de capa preta, cujo título em grafite deu-me um calafrio a percorrer toda a espinha: RASALOM. Desviei os olhos assustados para a direita, na direção de uma porta de madeira de quase três metros de altura, quase à altura das colunas grossas que se intercalavam em ziguezague pela ampla sala de chão batido, esburacado. Ele não tardaria a entrar por aquela porta, quando escurecesse, e eu precisaria me proteger o quanto antes. À minha frente, uma mesa de pedra seria a cama onde eu deveria deitar-me. Mas eu não sabia por que teria de deitar-me nela. Seria minha lápide, mas eu não me deixaria morrer, apesar da ameaça e do medo a percorrer-me a espinha com a frieza da morte.
Do interior escuro de entre duas colunas surgiu de repente uma mulher, em trajes campestres típicos do século XVII, rechonchuda e de cenho cerrado, trazendo-me um lençol branco e uma calça cheia de remendos. A mulher parou à minha frente e estendeu-me os panos, olhando-me com a seriedade espantosa de quem prevê o pior. Parecia, porém, mais segura do que eu. E foi o que demonstrou quando ordenou que eu trocasse as calças e deitasse-me na pedra. Depois disso não a vi mais e já estava deitado na lápide fria, coberto até a cabeça pelo lençol branco através do qual eu nada via, embora pudesse sentir perfeitamente a aproximação de qualquer corpo estranho. Meus olhos mexiam-se com pavor e eu sentia as pálpebras roçarem rigidamente o tecido branco. Súbito, ouvi instintivamente o trote ligeiro de um cavalo que fazia estremecer todo o chão, e vi que era um animal de um pêlo negro e luzidio, vociferando, de olhar lancinante em minha direção. Eu via nitidamente esvoaçar a capa igualmente negra do cavaleiro que açulava o quadrúpede. (continua)

terça-feira, 22 de julho de 2008

Preciosidades da Bíblia

"Quem fica olhando o vento, nunca semeará; quem fica olhando as nuvens, jamais colherá."Eclesiastes 11,4

Música

Flor do Medo

Venha me beijar de uma vez
Você pensa demais
Pra decidir
Venha a mim de corpo e alma
Libera e deixa o que for
Nos unir
Não vá fugir mais uma vez
Vença a falta de ar
Que a flor do medo traz
Tente pensar
Pode até ser mau e tal
Mas pode até ser
Que seja demais
Tudo vai mudar
Posso pressentir
Você vai lembrar e rir
Alguma dor
Que não vai matar ninguém
Pode ser vista e nos rondar
Não precisa se assustar
Isso é clamor
De amor
Venha me beijar de uma vez
Feito nuvem no ar
Sem aflição
Venha a mim de corpo e alma
Libera a paz do meu coração
Não vá se perder outra vez
Nesse mesmo lugar
Por onde já passou
Tente pensar
Pode até ser sonho e tal
Mas pode até ser
Que seja o amor

Djavan

Divagações

Quando ouvi pela primeira vez a expressão "risco de vida", fiquei ensimesmado em perscrutar o significado da mesma e me perguntei na ocasião se o certo não seria "risco de morte", já que a vida, em si mesma, não representaria nenhum risco. Acho que foi um desses apresentadores de noticiário televisivo que me fez ouvir isso. Bom... Recentemente, há pelo menos dois anos, ouvi, exatamente um desses apresentadores, anunciar "risco de morte", como eu cismara em duvidar. Hoje, curiosamente, aceita-se de fato o último termo, e eu fico lisonjeado comigo mesmo em saber que estava certo o tempo todo. Entretanto, volto a discordar mais uma vez, porque me atrevo em dizer que, nas circunstâncias atuais, o termo mais adequado seria, notavelmente, "risco de vida". Não há como negar que hoje, nos dias de hoje, viver é um grande risco. E morrer deixou de ser um risco para ser simplesmente uma fatalidade, como a Morte propriamente dita. E torno a divagar sobre a questão: "risco de vida" ou "risco de morte"? A bem da verdade, não querendo ir muito além em questões onde me sinto pouco à vontade, suponho que para quem esteja nascendo, convém que seja "risco de vida" e para quem esteja vivendo, "risco de morte". E como hoje em dia já se fala até em administração de riscos, a existência por si só deixa de ser uma dádiva para ser um grande risco.


Com Trânsito ou sem Trânsito

É muito corriqueiro a gente, despercebidamente, se queixar do trânsito, nos dias de hoje, sobretudo. Está cada vez mais demorado o percurso que se faz do trabalho para casa, e o contrário não é muito diferente. E quem nunca disse "voltar pra casa é ainda mais demorado por causa do trânsito." Por causa do trânsito? E se não houvesse trânsito, seria mais rápido? Vamos pensar!Trânsito é ato ou efeito de caminhar; marcha. O movimento de pedestres e veículos que transitam nas cidades ou nas estradas. Outro dia um colega me pergunta:"Quanto tempo você gasta pra chegar em casa, com trânsito?" -"Duas horas, mais ou menos." - "E sem trânsito?" - "Eu não chegaria em casa."Ele não entendeu e disse que era pra eu falar sério. Mas eu falei sério. Sem trânsito, eu não saio do lugar. É preciso transitar para que haja locomoção.Depois dizem que nossa Língua é complicada; não, não é; nós é que não a estudamos com a devida atenção. Com trânsito eu tenho alguma chance de chegar a casa, e se não houver congestionamento, mais rápido certamente eu chegarei.

domingo, 20 de julho de 2008

Pensamentos do autor de Alpondras

"Buscamos sempre compreender a razão pela qual vivemos e para a qual vivemos. A vida é o mistério maior que se nos enlaça a cada instante e em razão do qual persistimos em observá-lo, em experimentá-lo."

"De tudo quanto ainda tenhamos de viver, aprendamos a ser prudentes, criando em torno de nós, sob a aura de bons pensamentos, o baluarte de que necessitamos para marcharmos bravamente até onde possamos ir."

"Felicidade não é atributo do acaso
Sorte não é raio do destino
Os segredos da vida podem ser grande fardo
A quem os tem por insânia e desatino."

"Não se deve crer - ainda que o mundo esteja prestes a desabar - que não se é capaz, que não se pode gerir o próprio destino. Para continuar evoluindo sempre, até muito mais que superar-se a si mesmo, o homem deve convencer-se, com toda a sorte dos pensamentos positivos, de que é capaz das mais ousadas realizações. Ele vai sempre mais além."

"Mulher faz amor; homem faz sexo. Logo, bem-aventurado o homem que fizer sexo com amor: terá sempre uma mulher disposta a fazer sexo."